Luísa levantou-se, mal o sol deu os bons dias ao cheiro da serra.

Num sofrimento salpicado de rugas de fumo que pairava nos mistérios do coração, enganou a fome com uma côdea de pão esquecida na mesa da cozinha.

Depois, olhou a sombra das paredes da casa e sem palavras dirigiu-se ao curral para abrir ao gado.

A voz suspendeu-se no olhar e os olhos fecharam-se num arrepio vazio de amor.

As águas rebentaram e correram pelas pernas abaixo.

A porta do curral foi de novo fechada no balir das cabras.

Luísa sentou-se.

O silêncio foi rasgado com um ranger de dentes.

Tinha chegado a hora!...Uma contração...uns minutos...outra contração...e mais outra...

- Minha Virgem Santíssima, valei-me!

- murmurava ela em surdina.

Sozinha, tinha pedido a Deus nas orações da manhã e da noite, que seu filho não nascesse, enquanto não soubesse novas do seu marido.

A última noite de amor, a noite da despedida feita em lençóis lavados de lágrimas, tinha deixado marcas no seu corpo.

Marcas que com o passar dos meses, engravidavam cada vez mais e lhe faziam crescer as águas das esperanças.

Luísa não tinha todo o tempo do mundo. Carregando o sofrimento no peso do ventre, bateu à porta da Tia Alzira, a vizinha de todas as horas.

- Tia Alzira, Tia Alzira, ajude-me! Meu filho vai nascer! Por favor, pela graça de Deus, vá ao povo chamar a Tia Lurdes!

Tia Alzira mandou Luísa para casa e correu descalça até casa da mulher de virtudes.

- Tia Lurdes, Tia Lurdes, venha depressa, por favor! A pobre Luísa está prestes a parir! Venha, depressa!

Tia Lurdes abriu a porta e limpando o rosto ao avental, caminhou apressada ao lado da Tia Alzira.

Enquanto caminhavam, ia adiantando serviço, pois não havia tempo a perder.

- Olha Alzira, assim que chegarmos a casa da pequena, acendes o lume e pões uma panela cheia de água. Uma ou duas, se forem pequenas.

Eu vou precisar de água fervida para lavar a criança e a mãe. Levo aqui esta tesoura com que vou cortar a tripa e tu vais desinfetá-la, por favor. Mete-la dentro da panela a ferver. Assim, tenho a certeza que estou a proteger a mãe e a criança de uma terrível doença.

Quando estavam próximas da casa de Luísa, os gritos que lhe saíam do peito, faziam chorar as pedras do caminho.

- Pobre rapariga! Que a Mãe do Céu a ajude! - disse entre dentes a Tia Lurdes.

A porta estava aberta.

Luísa estendia o corpo na cama ainda quente da noite. As mãos apertavam a barra de ferro.

Tia Lurdes abriu uma caixa de pinho e tirou um lençol de linho que cheirava a naftalina. Depois, pegou num cobertor da cama e estendeu-o no chão do quarto.

- Anda cá, minha filha! Anda, sai da cama! Põe-te de joelhos aqui, em cima do cobertor.

Um grito estridente, outro e mais outro... inchavam a barriga prestes a rebentar.

- Anda, minha filha, puxa! Ajuda teu filho a vir ao mundo! Tens que fazer muita força! Anda, puxa, minha filha! Luísa respirava ofegante.

O suor molhava-lhe o rosto. As forças iam e vinham, tal como as dores.

A parteira arregaçava as mangas.

Pegou no lençol branco e fez um colo com ele.

Depois...mais um grito, um grito prolongado e das entranhas do corpo sai uma cabecinha.

-Está a sair, minha filha, está a sair! Puxa...punha...

Novo grito...muita força.. e Tia Lurdes ampara no lençol de linho, agora vermelho de sangue, uma linda criança.

- É uma menina, Luísa, é uma menina.

Ó Alzira, traz depressa a tesoura!

Tia Lurdes enrola uma tripa no dedo, tira-lhe as medidas com os olhos e num corte certeiro, separa a filha da mãe.

Depois, ata a envide com um fio de linho.

Duas palmadas são dadas no rabinho da criança e o choro da vida traz a alegria e a luz à escuridão que há muito pintava o frio daquele lar. Embrulha o recém nascido noutro lençol e cuida primeiro da mãe.

A mãe que agora geme uma mistura de felicidade, saudade e dor.

Atenta, vê a placenta sair.

A água nada numa bacia de esmalte...

Luísa pode por fim repousar, limpa do sangue vindo da profundeza das entranhas.

Há que tratar do bebé.

Nova água na bacia...e por fim, mãe e filha sentem o mesmo pulsar .

Luísa aperta a filha contra o peito puxa a mama para fora da combinação, mete o bico naquela boquinha tão pequenina e ouve-se a sofreguidão da primeira mamada.

O coração daquela mãe, é pequeno demais para albergar tamanho sentimento.

Luísa esperou o seu amor...na imensidão da serra que nunca mais o viu voltar.

O penedo da saudade, abriu uma brecha que nunca parou de chorar!

 

Publicado em
17/11/2021
na categoria
Caminhos na História
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Celeste Almeida

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