O inverno tinha-se despedido no silêncio das águas. O mês de março chegava carregado do aroma das camélias. As andorinhas repousavam na massa quente esquecida nas telhas dos canastros. Os dias coloriam-se com  pedaços de céu azul.

O sabor da terra despertava do descanso humedecido pelo renascer da esperança.

O galo na capoeira, todo emproado, chamava o Tio Amilcar com sinfonias acesas nas folhas do alecrim. Iluminado pelos sons do amanhecer, apagou a candeia, não fosse ela pegar fogo ao colchão de palha. Vestiu as calças de burel e a camisa de linho na pele da noite. Calçou os socos nos pés calejados, que lhe indicaram o caminho, rumo a casa do Senhor José pessoa abastada naquela aldeia serrana.

Ao chegar à Carvalhinha, o campo ecoava no pó do feno guardado no palheiro, seco pela voragem do tempo.

A melancolia provocada pelo inverno suspendia, agora, nos rebentos dos galhos das macieiras. Com a força engarrafada num garrafão prenhe de vinho morangueiro, Tio Amilcar aconchegava a enxada nas mãos, pronta a despir a terra do sossego refletida na nudez. As horas aceleravam na sombra. O suor de sal quente lavava-lhe a camisa de linho. Os gemidos doces do solo acariciavam a lâmina da enxada.

Tudo se transformava. Tudo se reconciliava numa simbiose perfeita.

Já o sol se tinha apagado na magia do poente, quando o Tio Amilcar chegou a casa da Senhora Cordália e do Senhor José. Sentou-se à mesa farta, coberta pela alvura de uma toalha de linho. A  Senhora Céu, engravidou uma malga de um bom e saboroso caldo, temperado com  osso de presunto.  Depois, estendeu batatas numa travessa besuntadas com pedaços de carne de porco. O copo do vinho nunca esvaziava, pois o patrão encarregava-se de o acrescentar.

Conversa puxa conversa e o Tio Amilcar emudeceu  com o toque das Avé Marias vibradas  no relógio de parede.

- Ó patrão, tenho que ir embora já!  Perdoe esta minha pressa, mas preciso  pisar  o Lugar da Ceira, antes da meia noite, senão aquelas mulas voltam a fazer-me o mesmo! Até amanhã, patrão. Até amanhã, patroa.

- Ó homem de Deus, que estás para aí a dizer?- perguntou a Senhora Cordália.

- Das bruxas, patroa, das bruxas! Elas andam por aí!

- Anda lá, não digas asneiras  Amilcar! Sabes o que eram as bruxas? Eram os copitos que tu levavas a mais no bucho!- respondeu o Senhor José.  

O pobre homem,  surrado de medo, relatou com agilidade a aventura de que tinha sido vítima na semana anterior.

- Pois bem, elas proibiram-me de abrir a boca, mas há-de ser o que Deus quiser! Na semana passada, ao chegar ao Lugar  da Ceira, estava o sino da Igreja a tocar a meia noite. Apercebi-me de que algo ali se passava muito estranho, mas segui em frente. Ó homens, elas agarraram-me, empurraram-me para os braços umas das outras, dançaram comigo, atiraram-me ao ar...fizeram-me o diabo a quatro! Nem queiram saber! Fiquei todo partidinho!

- Credo em Cruz!!! Mas quem eram elas, homem?

- Não as conheci, patroa. Nem quando elas rasgavam a noite com os gritos de alegria!

- Então e depois, José? Que aconteceu, depois?

- Depois, patroa, tiraram-me a roupa e meteram-me dentro do canastro da Tia Miquelina.  Antes de me trancarem, avisaram-me bem avisado, que nada contasse, senão para a próxima seria muito pior. E desapareceram, como um relâmpago.

- Então e tu, homem? Como foste para casa?

- A minha sorte, patrão, é que elas deixaram minha vestimenta pendurada num ramo de pinheiro. Vesti-me,  depois de fazer as necessidades no mato, antes que fizesse no cú das calças.

- Não sei que te diga, homem! Vai lá com Deus, antes que toque a meia noite na torre da Igreja. Já falta pouco. - retorquiu a Senhora Cordália.

- Até amanhã, patrões, até amanhã.

- Deus te abençoe e o Anjo da Guarda te acompanhe!- murmurou o casal em uma só voz.

Hoje, nada resta delas. Apenas as memórias guardadas no silêncio das telhas, do canastro da Tia  Miquelina, recontadas pela tia Céu que caminha para o centenário!  E quanta lucidez!

- Ai se não fossem minhas pernas!  Elas é que me não ajudam! -lamentava-se, enquanto dava alguns passos, apoiada num banco que arrastava pelo chão da cozinha.

Celeste Almeida, a autora deste texto.
Publicado em
23/2/2023
na categoria
Caminhos na História
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