Tudo mudou.

Mudou o espaço,

mudou o tempo;

tantas mudanças profundas, algumas céleres demais, outras numa lentidão que continua a fazer doer as horas que demoram a passar.

Um século nos separa deste dia.

O dia em que as aldeias da serra do Montemuro eram fartas no seio da miséria de todos.

Com o colchão de palha a ser cofre do dinheiro que não havia, com o pucarinho escondido no buraco da parede cheio de moeda nenhuma, em dias de casamento de uma filha da terra, a alma da aldeia tinha o esplendor e o brilho do astro rei.

Dia de casamento, dia de emoções fortes.

Dia de muita agitação nas ruas estreitas e nas casas com paredes meias.

As raparigas correm aos montes apanhar verdura e flores silvestres se as houver.

Os rapazes ficam na aldeia a fazer os arcos que depois são ornamentados com fetos, giestas , mimosas, urzes, tudo que a natureza dá!

Os arcos mais lindos enfeitam a rua da noiva, a rapariga que dentro de casa se prepara para o grande dia, o dia do seu casamento.

Com sabão azul tomou o seu mais precioso banho numa enorme bacia de esmalte. Limpou seu corpo a uma toalha de linho, enquanto observava o vestido preto e o véu estendidos no chão da sala, em cima de um lençol, também de linho. Ao lado, estava um par de sapatos, os primeiros sapatos que calçou e os únicos que teve em toda a sua vida. Poupou-os como se poupava o grão do milho no canastro e a farinha no moinho. Só os voltou a calçar no batizado dos filhos. Mas, mesmo nestes dias, levava os sapatos na mão e só os punha nos pés calejados à porta da igreja. Os únicos sapatos que teve e com ela foram para a cova sem nunca serem gastos!

Mas, voltamos à noiva que se prepara na única divisão da sua casa, uma sala com uma cortina de pano a separar a cama dos seus pais, das enxergas postas no chão.

A rapariga, veste uma combinação de flanela com uma renda a toda a volta, depois o vestido preto com espiguilhinha a enfeitar o peito e na cabeça um véu branco de tule preso com uma coroa de flores brancas a um coque, vulgarmente chamado um poupo que prendia os longos cabelos, faz dela a noiva mais bela para o rapaz que a aguarda dentro da capelinha.

Assim era a génese de uma rapariga que ia dizer o sim, no altar da capelinha!

Assim era, mas esta noiva , para meu espanto, calça umas polainas de lã.

Foto de "Soutelo- O Paraiso da Serra do Montemuro " 

Onde estavam as meias de mousse até às coxas, seguras com uma liga de elástico, ou as meias de renda, que as noivas tinham direito, pelo menos no dia do casamento?

Quantas noivas casaram sem esse luxo, porque o único dinheiro que havia, era para comprar o arroz para a boda?! O arroz feito no forno , onde os borregos e as batatas espalhavam por toda a aldeia um cheirinho a assado que fazia crescer água na boca!

Tempos de uma carência sem limites!

Tempos em que o Montemuro, tal como na maioria do nosso país, a única coisa que se reproduzia, era a pobreza.

Sabemos que as pessoas estavam amarradas à terra, que falavam em silêncio para as pedras, que perguntavam aos céus onde estavam e o que seria deles no amanhã, naquele fim do mundo tã ocomplexo e tão incerto!

Os ventos da serra fustigavam-lhes os rostos, o sol escaldante castigava-lhes a pele, mas todos os habitantes montemuranos tinham que aprender a sobreviver vestidos com o seu fato de burel, no dia a dia.

Atualmente, as aldeias minguaram.

Por lá ficaram os resistentes, alguns muito velhinhos que preferem morrer sozinhos na sua terra, em vez de irem para lugares desconhecidos onde os filhos residem.

Hoje, restam as memórias daqueles rituais festivos em dias de casamento, dias em que toda a aldeia ia em procissão assistir à celebração e ansiosos aguardavam a prece final do senhor abade para poderem ir saciar a fome de todos os dias.

- Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.

No final do banquete, os recém casados abriam o bailarico ao toque do realejo, no terreiro entapetado com folhas de laranjeira.

Tudo mudou.

Mudou o tempo e mudou o espaço, mas continuam as horas a demorar a passar nas aldeias do Montemuro, onde poucas raparigas há para casar.

Celeste Almeida: Autora do Texto

 

 

Publicado em
30/6/2023
na categoria
Caminhos na História
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