O país mergulhava na tristeza e no medo de uma ditadura que roubava a liberdade ao povo.

O autoritarismo dos governantes enterrava qualquer esperança e amarrava os pensamentos na cadeia do terror.

Nas localidades do interior faziam-se sentir, com maior intensidade, as privações regadas pela fome existente em muitos lares.

A aldeia de Gosende tentava lutar contra a repressão e o esmagamento dos sonhos, mas a aridez e a agressividade dos invernos pouco sustento dava às suas gentes.

A emigração, tal como em outros lugares era a machadada que cortava um destino negro e certo, abrindo novos horizontes a quem tivesse a coragem de se separar do cordão umbilical.

José Miguel da Costa Oliveira, hoje, com quarenta e três anos, nasceu no meio da pobreza e no vazio dos afetos. Frequentou a escola até à segunda classe, mas sua mãe necessitava das suas mãos pequenas para os trabalhos dos homens.

Deixou de ir às aulas e os livros passaram a ser os montes onde guardava o gado e as enxadas que cavavam as terras. Cansado de nada ter, resolveu buscar a sorte, juntamente com dois amigos, noutras paragens.

Em Espanha, trabalhou na apanha das cerejas e nas vindimas, mas sempre a ser explorado pelos patrões.

Passou fome e carências. Desesperado, com a carteira desguarnecida de qualquer metal, deixa para trás aquele país e juntamente com seus companheiros, decidiu voltar à sua terra.

Quando respirava ares portugueses e pisava o chão de Chaves, perdeu-se dos seus amigos.

Sozinho, vagueou até os pés cansarem.

Desprotegido, foi raptado por um acampamento de ciganos que o escravizaram de tal forma que as agressões corporais foram durante anos o seu sustento amargo.

Sim, durante anos, pois José viveu uma vida livre acorrentado pelo medo e pelo terror, mais de uma década.

Viajou na tristeza e na dor, por terras de Barcelona, Madrid e Santiago de Compostela, sempre no jugo daquela etnia que a muitos atemorizava.

Na sua terra natal, a irmã não se conformava. As lágrimas eram a força que lhe brotava do coração. As orações ardiam no incenso das promessas. Cruzar os braços e fazer o luto, não lhe circulava no sangue. Um sentimento maior deu-lhe animo para mover montanhas. Percorreu quilómetros.

Pediu ajuda a um programa televisivo, chamado Ponto de Encontro.

Exibiu a fotografia de José.

Quem sabe se alguém poderia saber do seu paradeiro? Quem sabe, pensava ela!

José continuava na rotina árdua dos seus dias. Dias envoltos de amargura e escuridão. A escravatura a que estava submetido torturava- lhe a alma.

Certo dia, foi rogado para ir cavar uma vinha a uma senhora.

Abençoado dia!

Mal chegou a senhora Adelaide, assim era o seu nome, olhou-ofixamente e incrédula.

-Diz-me, tu pertences aos ciganos com quem vives? Eles são teus familiares?

Como poderia ele responder a tal pergunta se estava proibido de revelar suas origens?!

Ficou mudo e calado.

Engoliu em seco.

Sua vontade era dar o grito de misericórdia que lhe sufocava o peito.

Mas, e depois? Levaria com o chicote até sua pele rasgar! Nada podia dizer. Tinha que fingir nada ouvir.

- Tu não ouves?

És surdo?

Responde à minha pergunta, rapaz.

Pertences ou não pertences aos ciganos com quem vives?!

Eu quero ajudar-te.

Tu não és do concelho de Castro Daire?

Teu nome não é José?

Ao ouvir o nome familiar que servia de almofada à sua cabeça todas as noites, o sangue gelou e sentiu um arrepio. Um arrepio de sentimentos que o fez vibrar de contentamento. Perdeu o receio. O eco das palavras, gravadas na água do caldo, caiu por terra.

- Sou sim, minha senhora. Eu fui raptado pelos ciganos com quem vivo já lá vão treze anos. Minha vida tem sido um inferno. Mas, ai de mim se tentar fugir. Eles dizem que me apanham nem que seja no fim do mundo e me matam.

- Espera.

Eu vou ajudar-te a fugir e nada temas.

Eles não te vão perseguir porque eu vou ameaçá-los que digo às autoridades.

A bondosa senhora meteu José no autocarro e deu-lhe dinheiro para as viagens.

Ao chegar a Lamego, caminhou estrada fora. A fome pesava. As pernas cediam ao cansaço. O olhar fixava-se no horizonte. A respiração pulsava ao ritmo dos passos.

Queria sentir o aconchego da família, ainda que frio e mudo.

Queria abraçar sua aldeia. Pisar o seu chão. Ouvir os chocalhos do gado. Rezar as Avé Marias com o sino da igreja.

Adormecer no cantar das águas dos moinhos.

Queria gritar aos ventos sua liberdade, mesmo sabendo o quão seria difícil a vida que o esperava! ...

E bem difícil!

Impedido de trabalhar por motivos de doença, José dedica-se acolher flores nas suas colinas. Com seus dedos beija as maias, as margaças, as marcelas e as carquejas. São elas que todos os anos florescem para encher os sacos que depois leva no peso do corpo à aldeia do Mezio. Sempre vai fazendo algum dinheiro para acrescentar ao pouco ou nada que tem.

Tem por companhia a mãe e o padrasto.

Sua irmã, ainda hoje, agradece a Deus o milagre que lhe deu de volta o que já considerava perdido.

Vive pobre, mas vive longe de uma vida de escravidão que lhe roubou as primaveras mais floridas da juventude.

Vive pobre, mas vive sem o medo que durante anos o amarrou a ferros atrás de uma carroça de ciganos.

José Miguel da Costa Oliveira, com mágoa de um passado enterrado mas jamais esquecido, contou-me sua história de vida sofrida , com um sorriso límpido e um coração puro.

Pela sua coragem, merece o colo dos meus dedos e a ternura do meu coração.

Celeste Almeida: Autora do Texto

Publicado em
30/6/2023
na categoria
Caminhos na História
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