Era uma vez um almocreve** (veja nota no fim do texto), que desafiava as tristezas,  cantando para  os penedos da serra. Com o burrinho carregado de carvão, percorria as colinas feitas de terra batida, na aridez do tempo.  Os versos rimados, deixados no vento, eram rios de águas turvas, mergulhados no horizonte sem cor. Com o suor do corpo bebia os espinhos da paisagem muda, que o sufocava.

Sempre que avistava algum povoado, fazia ouvir-se, rasgando a montanha com seu compasso, ritmado nos cascos do burrinho.

- O almocreve e o burrinho, o carvão a carregar, a fim de alimentar, a família que tem. O almocreve e a pedinchona, comendo pão e azeitona, Lamego vai, Lamego vem. Eu no caminho cansei, numa vida que eu nem sei, como venci tal guerra, sempre de terra em terra - entoava, sem alegria,  o almocreve.

Arquivo pessoal

Numa tarde , adormecido na melodia da vida, aproximava-se do nicho do Senhor dos Aflitos, a caminho de Gosendinho, quando uma enorme cobra assustou o animal. Correndo sem destino, ignorou o chamamento do dono. O pobre do homem  deu velocidade  aos socos e desbravou terrenos virgens, na ânsia de pegar a corda  que arrastava o verde do mato.

Um grito de dor fez tremer o Senhor dos Aflitos.

- Ai o meu pé! - queixou-se a si próprio, caído por terra.

Permaneceu sentado na rocha durante longos minutos,  até que o jumento  se aproximou.

- Anda cá, preciso do teu corpo, para me levares até Lamego. Eu não consigo dar um passo.

Foto: Dreamstime

Montou no burro e regressou à terra. Sua mulher era uma "santa" que curava todos os males. Mal viu o marido, preparou a benzedura. Pegou numa agulha e num novelo de linha. Com o pé no seu colo, começou a reza, fingindo que estava a coser um tecido de linho.  

- Eu te coso.- orava ela.

- Carne quebrada e nervo torto.- respondeu ele.

- Cosa a Virgem melhor do que eu coso pelo vão. Em louvor de Deus e da Virgem Maria, Padre Nosso e Avé Maria.

Finda a benzedura, molhou os dedos em azeite e esfregou-lhe  a parte dorida e inchada. Rezou um Pai Nosso e uma Avé Maria a Santo Amaro, advogado dos  ossos partidos e ofereceu  o marido a Nosso Senhor dos Aflitos, nicho do lugar onde o acidente tinha acontecido.

Durante nove dias, todo este ritual foi feito. As melhoras faziam-se sentir, dia após dia, nas linhas do novelo. A agulha coseu, em cada ponto,  todo o padecimento do marido.    

Os dias passaram. O vento soprou uma brisa suave suspensa em molhos de giestas. O tempo voltou a ter cor no negrume do carvão. O Senhor dos Aflitos em Gosendinho, acolhia de braços abertos na cruz, o almocreve que sempre que por lá passava, ajoelhava e mergulhava em oração.

Celeste Almeida, a autora deste texto.

** Nota do Editor:

Almocreve = Indivíduo condutor de animais de carga (em viagens periódicas ou não).

Publicado em
4/8/2022
na categoria
Caminhos na História
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