O tempo perdeu-se na idade média, mas a tragédia aviva a memória gasta nos séculos.

No dia 12 de Dezembro de 1867, mal caiu a noite, Maria das Dores, com a roupa ensanguentada, caminhou descalça, contorcendo-se com as dores do parto.

Atravessou a Serra do Montemuro, levando nos braços a leveza de um embrulho encharcado, apertado contra o peito. Aparentava uma calma que não possuía, para não perturbar o sono daquela criatura.

A tempestade rugia .

Os corgos vomitavam espuma nas cascatas escancaradas das rochas. O vento assobiava raivoso, despejando a fúria que assombrava as Portas do Montemuro. As rajadas chicoteavam-lhe o corpo leve como um vime.

Maria das Dores estava só. Só, com a natureza revolta a bater-lhe no rosto.

Cansada, sentou-se num penedo recortado e esguio que a abrigou daquele temporal medonho.

Elevou os olhos ao Céu e numa prece sentida, orou ao senhor:

- Meu Deus e Senhor não permitais que meu corpo e meu espírito desfaleçam, sem que ponha minha filha a salvo.

De novo, reencontrou as forças e a coragem, perdidas naquele palheiro instantes antes.

As horas arrastavam-se lentamente, para não despertarem os espíritos ocultos.

No ar pairava um lamento. Apenas um lamento. O lamento de uma criança, que cortava o silêncio.

- Como sou desgraçada! Sou uma desgraçada que desgracei a minha vida e a desta inocente!

Mas descansa, Maria da Luz, que eu vou por-te a salvo. Nem que seja a última coisa que as raizes do chão me vejam fazer.

Não permitirei que nenhuma má língua da aldeia te ultraje, por seres uma filha de ninguém.

Vieste ao mundo sem teres um pai e por isso serias uma infeliz no meio de quem te não merece.

Sabes, deixei enganar-me pelas palavras bonitas daquele malvado! Iludiu-me, e depois, quando lhe disse que estava de barriga, abandonou-me. Foi-se como o fumo, nunca mais ninguém o viu!

O choro da criança crescia com a força do leite que jorrava das mamas. Com a voz doce e cantante, embalou aquele bebé recém nascido. As lágrimas rolavam-lhe pela cara, enquanto a boca da criança emudecia nos bicos dos peitos.

Instantes depois, um silêncio profundo ecoou nas pedras da serra.

As horas pareciam dias.

Com os olhos injetados de sangue, apressou o passo num grito uníssono. Um grito, apenas. O seu grito, preso na garganta, que cortava os lameiros molhados transformados num braseiro.

De peito arfando, coberta de suor e lama, correu com a cólera do vento e com a chuva .

Um só desejo a dominava: chegar depressa, ao anoitecer, à Casa da Roda dos Expostos ou dos Enjeitados, como ouviu chamar-lhe.

Lamego ficava distante, mas no crepúsculo avistou a torre do castelo.

Naquele horizonte largo, não se enxergava viva alma.

O sangue continuava correndo nos gemidos do seu corpo. Agora, nada a impedia de continuar a caminhada. Nem mesmo as mamadas dadas sempre com o ondular das ancas.

Caiu a noite.

Outra noite.

A Casa da Roda dos Enjeitados estava ali, à sua frente.

O cilindro giratório esperava de boca aberta, o abandono de um filho de ninguém, ou de um fruto de uma relação proibida, ou até mesmo de uma rapariga pobre.

Maria das Dores tocou a sineta.

Apertou a criança contra o peito. Beijou o rosto angelical da sua filha pela última vez.

Com muito jeito, não fosse o sangue do seu sangue magoar-se colocou-a na roda, embrulhada num pedaço de linho. Com ela, um papel envolto num espinho de uma roseira.

Lia-se, apenas:

É minha filha. Filha de ninguém.

Lá dentro, a rodeira irmã pegou-lhe ao colo e apertou-a contra o peito.

Em segredo, Maria das Dores deixou sua esperança.

Morreu, naquela parede fria para a vida.

Regressou à sua terra, mais leve nos braços, mas carregando para sempre, o peso do mundo no seu pobre coração.

Publicado em
1/5/2022
na categoria
Caminhos na História
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Celeste Almeida

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