O horizonte fazia a cama, no crepúsculo da Serra, envolto no azul do dia e no escuro da noite.

As vacas e as cabras apagavam o rasto dos socos do Tio Abel.

O curral esperava-as de portas escancaradas e cama mudada de novo. Lençóis de folhas outonais mortas e tojos frescos que choravam ainda os cortes da gadanha.

Na casa fria, o gelo do entardecer dormia numa pedra de ardósia sem calor. Agitada no negrume do chão, a lareira, num trágico silêncio, aguardava o despertar do sono inquieto. As panelas enlutadas pelo fumo acariciavam na barriga, o pó da última chama.

À frente, a Tia Carminda levava o dia no regaço vestida pelo cansaço que ardia no peito. Caminhava apressada ouvindo as canções que gemiam nos montes. Era preciso dar vida ao lume, fazer a ceia, porque o seu Abel, ainda tinha que ir do outro lado do Rio.

Todos os meses, aquela volta era feita.

Cabelos para cortar aos idosos e para rapar às crianças.

Os piolhos infestavam de tal forma que as cabecitas sangravam ao coçar.

Coze umas batatinhas solteiras e engorda as brasas com duas sardinhas compradas na véspera ao sardinheiro.

Já a Lua vivia na boca aberta da noite, quando o Tio Abel entrou em casa com o vasilhame raso de leite, fruto da ordenha do gado. A mulher coa a água das batatas no balde da lavagem e estende-as numa travessa temperadas com o molho da sardinha.

Sentado num banco, olhos cravados no chão, Tio Abel pediu às pernas que caminhassem com o vento, no estrato frio da renda orvalhada.

Tudo dormia na alameda do nevoeiro. A lua habitava no horizonte ofuscada por grossas cortinas.

Ao chegar perto do Cruzeiro do Penedo, sentiu uma corrente de ar, que lhe encarcerou a alma. O cruzeiro estava todo iluminado, como se o Sol ali tivesse feito a cama. Sentada na pedra, reparou numa figura feminina, muito estranha.

Rosto bonito, cabelos cor do ouro até à cintura, um vestido brilhante que mais parecia a Constelação Maior, mas...os pés descalços eram pés de cabra.

Uma alma do outro mundo, pensou o Tio Abel!

Será uma alma bendita ou será o diabo em figura de gente para me atentar?

Santas Almas benditas valei-me!.Jesus Cristo atendei-me!

Com o sangue a percorrer as entranhas profundas do medo, sentiu-se morrer e ressuscitar no silêncio das raízes do chão.Lentamente, foi-se aproximando do Cruzeiro do Penedo. Decidido a desvendar aquele mistério, perguntou:

- Precisa de alguma coisa?

Diga o que quer e vá embora para sempre deste lugar!

É alguma promessa que deixou por cumprir?

Quantas garrafas de azeite e quantas velas, para o Santíssimo Sacramento? Diga o que veio pedir, que eu lhe farei tudo e vá embora pela Graça de Deus!...

Ainda as palavras eram mastigadas na boca, um estrondo rachou o penedo e paralisou o corpo do pobre homem, durante algumas horas.

- Isto é para saber que quem vai, vai e quem está,está!

- respondeu a assombração.

A visão foi-se daquele lugar solitário e místico. Hoje,ainda se ouve no Cruzeiro do Penedo, o estrondo das bofetadas férreas estigmatizadas no rosto do Tio Abel.

Enquanto as noites foram noites, não existiu dia algum, que o Tio Abel não avivasse a memória gravada nas rugas da pele. Uma memória jamais esquecida pelos habitantes daquele lugar da Serra e, lida no silêncio das pedras do Cruzeiro do Penedo.

Celeste Almeida: Autora do texto

 

Publicado em
30/6/2023
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Caminhos na História
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