Estávamos no tempo das luas! No tempo em que as pessoas trabalhavam de sol a sol ou de lua em lua.

Estávamos no tempo em que os penedos eram os únicos confidentes das mulheres de rosto escondido na capucha e dos homens que defrontavam nesta serra a sua maior guerra.

Estávamos no tempo em que as pessoas lutavam para sobreviver no meio de tanta desdita, mas...no meio de tanta carestia, conseguiam viver felizes!

Antes que o tempo apague as memórias de um tempo tão desprovido de tudo, relembro as eras, outras eras de tantas avós que iam aos montes apanhar nos alqueves os saramagos!

Cresciam no meio do centeio, estas plantas que substituíam as couves inexistentes nos lameiros e juntamente com unto engordavam as panelas que à hora da ceia alimentavam as bocas famintas!

As crianças torciam o nariz, faziam caretas àquele caldo tão amargo, mas na falta de tudo, para muitos era o único sustento que acompanhado com um pedaço de pão lhes enchia a barriga!

O pão, esse alimento sagrado que abençoava o altar de tantas casas!

O pão, esse fiel companheiro que era posto dentro das cestas, junto às meias de lã em urdidura e ajudava a aguentar a fome dos dias massacrados pela miséria!

Lembranças das minhas memórias que guardo no sacrário da minha alma!

Tantas lembranças que vivem em mim!

Lembro, aquele menino que na hora do recreio tirou do bolso um naco de pão e, por descuido o deixou cair ao chão! Imediatamente, se baixou, o apanhou e o beijou repetidas vezes para de seguida o meter na boca!

- A senhora minha mãe ensinou-me a agradecer todos os dias o Pão Nosso de cada dia e que era pecado estragar o que muitos outros meninos não têm .- disse-me esta criança com os olhos mais abertos que o dia!

Lembro, aquela casa com a cozinha térrea e uma outra parte de soalho. Aqui, havia uma cama de ferro com mantas de trapos e por cima uma de lã. Pregos na parede serviam de cabide para uma capucha e algumas peças de roupa. Um pano de linho mais negro que o fumo separava esta cama de um colchão de palha encostado numa parede cheia de buracos.

Era a cama do Toninho, o menino mais ávido de saber que todos os dias entrava na salinha da escola.

Era sempre o primeiro a chegar porque nunca tinha preguiça de levantar com o acordar da madrugada para levar as vinte ovelhas e cinco cabras pastar! Chegava sempre com um largo sorriso e um coraçãozinho cheio de espaço para acolher novos conhecimentos! Nunca vinha cansado, dizia que só se cansava fora da escola, porque fora da escola a vida era sempre igual!

O Toninho o menino que já partiu, sem nunca conseguir realizar o seu grande sonho:

ver um avião de perto!

- Senhora professora, o avião não cai em cima de nós? Como se segura lá em cima? E as pessoas como cabem lá dentro se ele é tão pequenino? Eu queria, eu queria muito ver um avião, leva-me ver um avião, senhora professora?

- Quem sabe um dia, Toninho, possamos ir os dois?

Vou contar-te um segredo, Toninho, um segredo só nosso!

Sabes que eu também nunca vi um avião de perto?

O tempo foi tão curto para tantas criancinhas! O tempo foi tão curto para o Toninho que um dia, adoeceu e na sua aldeia não havia estradas onde os carros pudessem andar! O hospital estava longe, os alqueves cheios de centeio, o pão no altar das mesas...mas, os médicos viviam para lá dos muros!

Lembranças, nostalgia, memórias!

...Simplesmente, memórias!

... Saudades do menino que nunca viu um avião!

... Saudades dos tempos em que os meninos não sabiam que havia aviões que tantos outros meninos matam!...

Celeste Almeida-Autora do texto

 

 

Publicado em
30/9/2022
na categoria
Caminhos na História
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