Longe vai o dia, em que o sol iluminava sem cortinas de sombra a Serra do Montemuro.

Longe vai o dia...aquele dia, em que uma professora saltou de uma carreira, saída de Castro Daire e pisava um dos pontos mais altos da serra, conhecido por Portas do Montemuro.

Meio dia. Sol a pino.

Com um filho apertado contra o peito e outro aconchegado no ventre, segurava no braço arqueado um saco com fraldas de algodão macio, pois outras não existiam, a lata da farinha e tudo que era indispensável para o conforto de um bebé de seis meses.

Um bebé que tinha a sua ama, uma doce rapariga que o embalava e cuidava em sua casa, enquanto sua mãe se dedicava por inteiro aos seus alunos!

Carregava nas costas, com uma larga correia suspensa no pescoço, uma pasta, onde levava todo os manuais escolares.

A professora encostou-se às ruínas da muralha das Portas do Montemuro, lugar fronteiriço entre os concelhos de Castro Daire e Cinfães.

Um silêncio prolongado ouviu-se nas mãos trementes.

Aflita, quase desesperada, começou a sentir medo.

O seu coração batia forte enquanto reprimia um grito que lhe rasgava a carne. Envolvida numa onda de solidão, precisava fugir daquele lugar que quase tocava o céu e se tinha transformado num inferno vermelho.

Os anjos tinham-na abandonado.

O Cristo Crucificado que lhe beijava todos os dias o coração, talvez, tivesse entrado naquela capelinha isolada que dormia dentro da muralha .

Estava completamente sozinha.

Só o choro do seu filho se fazia ouvir nas pedras abrasadoras do mês de junho.

- Por favor, senhor José, por favor, não demore! Venha buscar-me, como o fez ao longo do ano! Não me abandone neste deserto, neste fim do mundo! O senhor, sempre chegou antes de mim! - sussurrava a professora.

O senhor José era taxista e residia na localidade de Alhões. Tinha celebrado com ele um acordo de a ir buscar às Portas do Montemuro, diariamente e transportá-la até à aldeia de Bustelo da Lage, onde ela lecionava, na Telescola.

Mas... O senhor José tinha ido ao Porto levar um passageiro. Tinha a noção que chegaria a tempo...mas, quanto mais ele acelerava o carro, mais a estrada se estendia...

Uma rajada vinda do alto da serra, chicoteou o rosto da professora com o pó que levantava do chão.

Sentiu vergastadas no corpo e sentiu-se leve como um vime.

Como por magia, elevou os olhos ao céu e rezou uma prece sentida.

Liberta do peso que a atrofiava, começou a descer a colina deixando para trás as covas onde enterrava os saltos dos sapatos.

O filho que levava ao colo acabou por adormecer na quentura do leite que jorrava das mamas.

O outro agitava-se na barriga!

A professora desfalecia lavada em suor.

Um rio de lágrimas desaguava nos cabelos loiros do seu filho. Os pés sangravam.

Cada passo que dava sentia tanta dor, que parecia estar a enterrar uma coroa de espinhos na alma!

Mas, não podia parar naquele lugar, onde só os lobos poderiam aparecer!

Os alunos estavam sozinhos, aflitos, sem saberem o que teria acontecido à professora que na aridez da vida, os abraçava e beijava todos os dias com muita ternura!

Um barulho se aproxima.

Um carro branco parece parar naquela estrada que mais parecia um carreiro de cabras.

Um senhor olha a professora com cara de espanto.

A professora lança-lhe um olhar.

Mais parecia uma súplica, um pedido de socorro!

O carro continuou viagem, afastando-se cada vez mais, da professora. Naquela imensidão não se descortinava vivalma. Terra, pedras, pó, pranto, dores, lamentos...lamentos que pairavam no ar, saídos do coração exangue daquela mulher, mãe, professora, amiga!...

Foram mais de seis quilómetros percorridos naquelas sofredoras horas que se arrastaram tão devagar e lhe abriram feridas no corpo e na alma.

Feridas que ela com uma varinha de condão transformava em pérolas que adornavam as tranças dos seus cabelos..

As tranças foram desfeitas...as pérolas brilham nas suas memórias... Nem o senhor do carro branco...o senhor Inspetor... lhe conseguiu secar o choro, dizendo:

- Mil desculpas, senhora professora, mil desculpas!

Eu nunca imaginei que aquela senhora que desbravava a serra, era a senhora...desculpe. Agora descanse. Hoje, eu dou aulas aos seus alunos.

- Ai se eu soubesse que o senhor era o senhor inspetor!!! Ai se eu soubesse... terminaria ali naquela curva da estrada o meu tormento!- sussurrou a professora lavada em pranto misturado com o suor que lhe feria o ser. Rasgaram-se estradas, descobriram-se novos caminhos, fecharam-se círculos, faleceu o meu amigo senhor José...mas, ainda hoje, correm silenciosas lágrimas no rosto daquela professora, ao lembrar o companheiro de tantas horas, o grande amigo, o senhor José de Alhões!

Arquivo pessoal

 

 

 

Publicado em
1/5/2022
na categoria
Caminhos na História
Clique para ver mais do autor(a)
Celeste Almeida

Mais do autor(a)

Celeste Almeida

Ver tudo