Naquele longo serão da aldeia, ouvia-se na cozinha o crepitar da lenha de carvalho a arder.

Os dedos da tia Lurdes percorriam as contas gastas de um rosário e os seus olhos perdiam-se nas calças rotas do filho Dimas.

No curral, de paredes meias com a cozinha, o gado estava acomodado.

O mundo dos animais estava em paz.

O ti Manel tinha ido tapar a poça do Castelo Novo do Mouro, e há muito tempo deveria ter regressado. A luta que se travava pela água, mesmo caindo tanta dos céus, era renhida e silenciosa!

- Por onde andará o senhor teu pai, na calada da noite? Ouve-se o mocho a piar no carvalho do lameiro do ti Abel e boa coisa não adivinha! O raio do homem andaria por lá a roubar-nos a água e o teu pai não segurou a raiva! Ainda ontem, fomos dar com a poça aberta!

O malvado do Abel tinha tirado os torrões do boeiro! Teu pai ficou perdido e se não fosse eu segurá-lo, tinha-lhe dado com a sachola!

Que Deus Nosso Senhor lhe ponha juízo na cabeça, antes que cometa a loucura do teu avô!

Por causa da água do lameiro, passou o resto da vida na cadeia! Chegou ao lameiro, viu o vizinho a roubar-lhe a água e não se fez rogado. Mandou-lhe com a sachola na cabeça e matou-o. Caiu dentro da poça e lá ficou! Teu avô nem da água o tirou!

O vento fustigava impiedosamente a serra.

O frio e a chuva enregelavam os ossos de quem andasse na noite.

De repente, um relâmpago rasgou os céus e iluminou toda a aldeia.

Serra de Momtemuro

Tia Lurdes e seu filho Dimas, ficaram aterrorizados e num ímpeto ficaram aconchegados num abraço.

Um forte trovão rugiu e pedras de granizo entravam por baixo da porta.

Era preciso ir ver do tio Manel, mas por onde andaria ele naquela noite tenebrosa?

Já passava da meia noite.

As águas corriam na escuridão das ruas, abrindo caminhos na direção ao corgo.

Aquela noite, era uma noite do outro mundo.

A tia Lurdes acendeu uma lanterna, calçou os tamancos e cobriu-se com a capucha. Depois, pediu ao filho que fechasse a porta e só a abrisse quando ela voltasse com seu pai.

O pequeno Dimas, meteu-se na cama, cobriu a cabeça e tapou os ouvidos com os dedos. Não queria ver a luz dos relâmpagos, nem ouvir o ruído dos trovões, mas eles quase lhe entravam para dentro de casa, juntamente com as pingas grossas da chuva.

Naquele ano, o telhado de colmo não tinha sido mudado.

O fogo que, no mês de Junho, transformou os montes de Vale Papas, Pimeirô e Gralheira em cinzas tinha-lhe levado a única seara de centeio.

Ficaram sem palha para as enxergas e para o telhado, já não falando na falta que o cereal fez!...Eles e todos os habitantes das aldeias, viram-se sem aquele bem precioso, tudo por culpa do chifrudo que de quando em vez, vinha tirar o sossego daquela serra lembrada por ninguém. Saía das profundezas do inferno para afugentar as almas.

As vivas e as mortas!

O medo acompanhava a tia Lurdes, crescendo nos passos que a levavam não sabia para onde! Ao passar na encruzilhada do Valedo Corgo, apercebeu-se que um vulto se rebolava junto ao nicho das alminhas. À medida que se aproximava, o vulto ia tomando a forma de um grande animal.

- Mas que lobo enorme! Ainda bem que eu peguei na vara de tocar as vacas! Se me atacar espeto-lhe o aguilhão num olho que o mando pró inferno!

- Minha Nossa Senhora, que bicho é este? Vai ser o fim da minha vida!
Um cavalo levantou-se e um homem muito peludo sobe para cima do animal.
Uma sachola está no meio do caminho abandonada.
O cavalo começa, então, a correr na sua direcção.
Sem hesitar, espeta o aguilhão no rosto do homem peludo.
Um grito de dor percorre toda a serra.

Tia Lurdes cheia de medo regressa a casa, na esperança de já lá estar seu marido.

Sentado à lareira o tio Manel limpava com um pano de linho o sangue que corria do seu rosto.

O pequeno Dimas dormia.

Tia Lurdes olhou o tio Manel, e sem entender o que se estava a passar, perguntou :

- Que te aconteceu, homem? Não me digas que te pegaste com o Abel?

- Não, mulher! Eu não vi Abel nenhum! Não sei por onde andei, nem quem vi! Só sei que passei na encruzilhada do Vale e lá alguém me espetou um aguilhão no meu rosto! Talvez uma assombração ou o chifrudo. O que aconteceu depois, pouco se sabe!

Sabe-se, sim, que tia Lurdes, uma noite em cada mês, desaparecia da cama durante a noite e só regressava pela manhã, antes do marido acordar! Nessas noites, nos lameiros, ninguém mais foi deitar as águas, pois sete bruxas dançavam toda a noite no ar com muitas lanternas acesas!

Ninguém mais, a não ser o Arnaldo que se quis armar em valente e foi encontrado amarrado todo nu, no tronco da cerejeira, junto à poça!

A partir daí, as águas do lameiro, uma noite em cada mês eram para as bruxas se banharem depois de viverem o seu fado.

Seria a tia Lurdes uma das sete?

Ficaria a tia Lurdes com o " fado" que tirou ao marido, no momento que lhe espetou o aguilhão?

Sim, porque segundo diz o Povo, o sangue do lobisomem não pode cair noutra pessoa, caso contrário essa pessoa ficará com o "fado".

Libertou-se um homem dessa transformação misteriosa, mas outro lobisomem incorporou noutro corpo.

Mistérios, coisas sobrenaturais que para o POVO não têm explicação.

Mistérios que povoam a Serra do Montemuro e outros lugares do Interior Profundo.

Celeste Almeida: Autora do Texto

Publicado em
30/6/2023
na categoria
Caminhos na História
Clique para ver mais do autor(a)
Celeste Almeida

Mais do autor(a)

Celeste Almeida

Ver tudo