Na aldeia de Soutelo, a árvore da vida é guardada pelo sino da Igreja Matriz e abençoada pela Santa Eufémia.

Cheguei e senti-me no paraíso daquele santuário, tantas vezes regado pelas lágrimas dos peregrinos.

Em silêncio, evoquei a divindade e agradeci o pulsar de mais um dia, num permanente sentimento de contentamento.

Depressa, meu recolhimento foi quebrado pelo eco de uns passos solidários na sombra mística da água do fontanário.

Tia Carmen carregava num saco de plástico o peso dos anos, na verdura do cebolo, pronto a ser plantado.

- Boa tarde, minha senhora! Está a rezar à Santa Eufémia?

- Falava com Ela, sim, pois sei o quanto é milagreira.

E a Tia Carmen, vai até ao campo, não é verdade?

- disse eu, na esperança que o cebolo pudesse esperar pelo húmus da terra.

- O calor ainda aperta, a terra queima, pode esperar um pouco. Vou pousar minha carga e trocar uns dedos de conversa com a senhora.

- Sabe, Tia Carmen, eu estava para aqui a rezar sem contas. Dizia para meus botões, que este escadario deve guardar muitos segredos, enterrados no tempo e protegidos pelos ventos que sopram!

Será que a Tia Carmen conhece algum deles?

- Que quer saber, senhora professora. Quase que sou capaz de adivinhar! Pergunte, pergunte, que o que eu souber, também fica a saber! Onde já se viu, eu, uma pobre mulher que nunca escreveu uma letra, ensinar uma professora!

- Tia Carmen, com a sua profecta idade, muitas memórias traz nos bolsos desse avental. Eu queria tanto, ouvir estórias de milagres, de bruxas...

- E eu tantas sei, tantas! Para lhe contar tudo, o cebolo terá que dormir no meu quinteiro, esta noite!

- Não, hoje, quero ouvir uma ou duas. Depois, um dia destes, voltarei...

- Olhe, era eu pequena, andava no Cerdeiró, no campo do Tio Ernesto e da mulher, Tia Rosa.

Boas pessoas a quem Deus Nosso Senhor nunca deu um filho, para desgosto deles.

Quando o sol se escondeu entre os pinheiros e a Torre tocava as Trindades, Tia Rosa abriu a cerca ao gado e o marido foi abrir a poça.

Ao chegar lá, estavam duas galinhas pretas a banharem-se na água parada. Ele, com paciência de santo, enxotou-as pois queria abrir o bueiro. Uma delas fugiu, mas a outra desafiava o bom homem.

Cansado, lavado no suor do pó, bateu-lhe com a enxada e partiu-lhe uma asa. Não queira saber o que aconteceu, depois, senhora professora, não queira saber!

- Quero, quero! O que aconteceu, Tia Carmen?

- A galinha transformou-se numa mulher. Uma mulher, que para espanto do homem, era a sua comadre. Ficou ali, a gemer de dores, como braço partido, tal qual Deus a mandou ao mundo. Toda nua, vestida na vergonha.

- E depois, que aconteceu?

- Ela pediu ao compadre que lhe fosse buscar roupa, para cobrir o corpo.

Este correu a casa, pegou numas peças da Tia Rosa elevou-as à infeliz. Já composta, a comadre agradeceu-lhe imenso, pois foi a última vez, que se transformou numa bruxa.

Aquilo, era um fado, um triste fado que a desgraçada tinha e para quebrar o encanto, tinha que ser magoada. Regressou a casa com o braço partido, mas abençoando as dores que o sofrimento lhe causou.

- Então e a outra galinha, Tia Carmen?

Quem era a outra galinha?

- Pois isso, é que nunca se soube.

- Mas a comadre do Tio Ernesto devia saber e podia desvendar o mistério.

Porque não lhe perguntaram?

- Não sabia, não!

Assim que sua sina foi quebrada, ela nunca mais se lembrou de nada.

A outra continuou a sua desventura, mas nunca mais se foi banhar para aquela poça.

Iria para outros lados, decerto!

Ficou nos segredos de Deus ou do diabo, sim porque aquilo eram obras do chifrudo!

Amparada no cruzamento dos braços, a minha boa amiga levantou-se, carregou outros mistérios nos ombros, prometendo ficar mais leve, um dia destes, mas acompanhadas com um naco de pão e mais alguma coisita à mesa de sua casa.

Ficou com minha promessa de que voltarei e que levarei um bom vinho para regar nossa conversa.

Pode o relógio da Igreja dizer-me que a noite se aproxima, mas eu perco-me nas vozes de quem tão bem fala e tanto tem para me ensinar. Mesmo que, nem uma letra conheçam, daqueles rabiscos com que encho as folhas vazias que acaricio com as mãos e molho com o sorriso daqueles rostos que gosto de beijar.

 

Foto da autora, que é a professora desta história.

Publicado em
1/5/2022
na categoria
Caminhos na História
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Celeste Almeida

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