Eremita num jardim de maias, ergue-se o nicho do Senhor da Boa Morte, na localidade de Peixeninho.

vista parcial da capela do Nosso Senhor da Boa morte - arquivo pessoal

Edificada num tempo imemorável, jaz na memória de uma vida escrita na dureza das rochas e nas linhas dos rostos.

Beijada no sol da tarde, fechada na triste melancolia, muitas dores chora nas suas pedras.

O chão, regado por rios de lágrimas, ouve o silêncio das promessas sussurradas nos peitos, celeiros de sofrimento.

- Ó da casa, hoje, não precisa de nada!

Venha ver o bom queijo fresco da Gralheira!

Trago laranjas, carne fumada, sal, azeite e outras coisas mais!

- gritava o almocreve com seu cavalo carregado de cansaço.

- Hoje, não tenho dinheiro, bom homem!

- responde, por um postigo negro, a Tia Albertina.

- Pode pagar com lã ou linho! Eu aceito trocas! Eram muitas as vezes, que o almocreve percorria a pequena aldeia e de lá saía, com os bolsos cheios de nada.

Numa manhã amputada de vida, ao chegar ao adro da capela da Nossa Senhora dos Prazeres, os sinos tocavam docemente.

A aldeia acordava de mãos dadas, nas colinas vermelhas da paixão.

O senhor João, com muitos caminhos tortuosos rasgados na poeira do chão, desceu do cavalo e debruçou-se no fontanário para lavar o suor do rosto.

Sentiu uma forte dor no peito e deixou-se cair naquele lugar.

O cavalo, fiel amigo do dono e, companheiro de todas as horas, lambia-lhe as faces.

Sentindo que algo de grave se estava a passar, deitou-se e com as patas dianteiras, abraçou a dor do homem inanimado.

Lentamente, os olhos abriam as cortinas e a luz penetrava na alma.

Agarrado à corda do cavalo, ergueu-se lentamente. Olhou a água do tanque. Uma imagem refletida nos limos, cor da esperança, sorria para ele.

- Nosso Senhor da Boa Morte, valei-me!

Que será dos meus oito filhos, se a morte me levar!

Minha mulher, como bem sabeis, está muito doente.

O bicho ruim, entrou no corpo e está a comer-lhe a carne.

Não permitais que eu desfaleça aqui, Senhor da Boa Morte!

E, já agora, que está a ouvir-me, interceda também pela minha Custódia. Curai-a. Livrai-a daquele bicho, que onde se mete tudo destrói.

Prometo um saco cheio de cera e sempre que venha a esta terra, rezarei um terço, em ação de graças, à volta do Seu chão sagrado.

A imagem, misteriosamente, desapareceu.

A água tornou-se da cor do céu. A fonte sussurrava um cântico de louvor. Montado no seu cavalo, regressou a casa, onde sua mulher o esperava, com o caldo de cebola regado com unto na panela de ferro.

À volta da mesa, os filhos rezavam o terço, olhando um crucifixo de madeira.

- Louvado seja Deus, Nosso Senhor!

Louvado seja, o Senhor da Boa Morte.

- murmurou o homem.

A mulher, que esperava a passos largos o anjo negro da morte, tinha no olhar um feixe reluzente, que pintava as paredes da casa com cores de amoras silvestres. A alegria, há muito fugidia do lar, renasceu na chama dos corações, que pulsavam a seiva da gratidão. O amor e a paz ecoaram num punhado de suspiros, feitos pérolas de um rosário em lábios silenciados. Os espinhos ensanguentados de ternura, transformaram-se num tufão de flores amarrados com o prazer da vida.

O almocreve, enquanto viveu, cumpriu a promessa ao Senhor da Boa Morte.

O saco cheio de cera foi posto no nicho.

O terço foi sempre rezado de joelhos nus, naquele espaço vazio, onde a terra canta em oração.

Celeste Almeida: Autora do texto

Publicado em
30/6/2023
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Caminhos na História
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