A noite caía implacável, sobre o queixume do céu.
Um manto branco cobria a pequena aldeia de Pimeirô, torturada pelo frio que punha gelo nas bocas.
Nos caminhos, ouvia-se o eco moribundo do silêncio.
Os lobos uivavam nos montes, batidos pelo vento cortante e violento.
Tia Reclinda fazia das fraquezas força. Sentada num banco tosco, aquecia-se nas cinzas mortas do lume. Embrulhada na sua própria pele, encolhia os ombros e sacudia o frio no ar do silêncio enrodilhado na lareira.
O telhado de colmo da pequena casa deixava entrar a ventania louca que corria pela serra. Há alguns anos que não era mudado.
Lá fora, a escuridão caminhava velozmente.
A neve continuava a cair, indiferente ao drama que fustigava os cabelos brancos da Tia Reclinda.
Os arrepios subiam-lhe ao peito e tentavam sair pela boca, pelos mãos e por todo o corpo.
No chão da lareira, um molho de giestas secas olhava-a com amargura. Ajoelhou-se na pedra fria, vergada pela tormenta e pelo pavor.
A caixa dos fósforos tinha, apenas, um fósforo. Um único fósforo.
Uma corrente entrou pelo crivo do telhado, fez um movimento rotativo em espiral e … tudo se apagou nas batidas do seu coração.
Chorosa, empurrou a porta e saiu. De olhos perdidos no horizonte branco, marcava o compasso na amargura que lhe inundava as entranhas.
A neve rangia e gemia, a prevenir que a vida é um duro caminho, pelo qual, pés leves ou pés de ferro terão sempre que passar.
Mais num sopro de alma do que em cima das rugas, chegou a casa da vizinha Aldina.
- Ó Aldina, ó Aldina!...
- Entre, Tia Reclinda, entre! Mas que força a trouxe até aqui? Já é noite escura, a neve cobre os trilhos...
- Eu não aguentava o frio. Ia acender o lume, mas o único fósforo que tinha na caixa, apagou-se. A feira, em Cinfães, é só daqui a quinze dias… se me deres umas brasas para eu poder deitar fogo às giestas…
- Leve esta caixa, Tia Reclinda, leve esta caixa. Eu tenho aqui três, Graças a Deus, porque o meu Alcino foi ontem à vila e trouxe-as.
- Deus Nosso Senhor te abençoe, Aldina. Dia de feira já te pago. Já pedi à Lurdes que me traga duas caixinhas, pois não tenho dinheiro para mais. Agora, vou-me , porque a noite já se pôs alta e os lobos andam perto! Ouvi-os a uivar lá para Vale de Papas!
- Vá com Nossa Senhora, mulher...
até amanhã.
-Que Deus te abençoe, alma caridosa! - respondeu, num virar de costas, Tia Reclinda.
O coração batia de tristeza e abandono, na tempestade dos sonhos das gentes que dormiam.
Lágrimas pesadas rolaram-lhe no rosto encarquilhado.
As giestas esperavam-na a sorrir no crematório da esperança.
A aldeia de Pimeirô correu, lentamente, na roda do tempo, que continua a rodar sem parar.
Para trás, ficou o isolamento que dividia o mundo em dois mundos, separados por um ponto entre o céu e a terra. Um ponto de luz que iluminou as pedras das ruas, polidas pelos socos das horas.
Rasgou-se o chão e uma serpente de alcatrão uniu aquele povo a outros lugares e outras gentes.
Gentes que vivem em comunhão e continuam a partilhar a caixa dos afetos, no paradisíaco vale do Bestança.
