A noite adormeceu há muito numa cama feita de terra molhada.
As estrelas tremem de frio em cima das nuvens.
A lua está constipada e não pode pôr os pés no chão nem mostrar suas faces rosadas de tanta febre.
Eu sinto saudades das primaveras da minha vida, quanto o sol acordava envergonhado nas ramadas da figueira que tocavam a janela do meu quarto.
A minha infância, hoje, é maior que o meu pensamento.
Recordo as minhas brincadeiras com a lama nos dias chuvosos. O cheiro a mosto que vinha dos túneis da adega cheios de vinho. As uvas a definharem na palha do centeio.
Ai, mas as saudades maiores, desta época do ano, têm outro sabor!
Outro sabor, outro cheiro e outra cor.
As primeiras castanhas que minha mãe trazia dentro do balde misturadas com os miscaros apanhados na mata do Prilhão, faziam-me correr para ela e pedir:
- Mãe, por favor, asse essas castanhas no assador. Eu quero muito comer castanhas assadas!
- Logo, minha filha, logo à noite ao fim da ceia para todos comermos!
Que lindo assador!
Parecia um jarro de barro vermelho, pintado com o negro do fumo e cheio de buracos. No cimo tinha uma asa e minha mãe, de vez em quando tirava-o das trempes e abanava-o para mexer as castanhas!
Enquanto as castanhas assavam, eu pegava nos cascavelhos* que vinham pegados às castanhas, deitava-lhes saliva, punha-os no borralho e ficava ali, a olhar os cascavelhos inchar, inchar e pum...rebentavam espalhando promessas no ar.
E as promessas que se espalhavam no ar, vieram ter comigo.
Eu fecho os olhos e ouço a gaita de beiços do amolador de tesouras.

Que melodia linda, que som mágico a gaita de beiços fazia entoar na aldeia!
Nós, as crianças corríamos para o amolador e ele sorria, dizendo:
- Ide pequenada, perguntar às vossas mães se precisam de afiar as tesouras e as facas!
Digam, também, que tragam os sombreiros que tenham as varetas partidas ou o pano roto!
As panelas de alumínio que estejam furadas.
Eu conserto-as com " pingos" e as malgas e os pratos de barro partidos com " gatos".
O amolador deixa tudo como novo, ide, ide!
Eu corria a casa, mas já pela porta saía a minha mãe com a tesoura, com as facas e o sombreiro que num dia de vendaval se virou e partiu muitas varas.
Trabalho feito nesta paragem e o trabalhador ambulante continuava a pedalar a sua bicicleta à procura de clientela. Voltava a pôr a gaita nos beiços e fazia-se ouvir em todas as ruas da aldeia.
Interessante, a forma como ele fazia descansar a sua bicicleta.
Depois, punha um avental de couro e pedalava, pedalava fazendo girar uma roda que trazia na bicicleta, entre o guiador e o selim.
Era a roda que trucidava todos os segredos das casas da minha aldeia, não fossem eles parar nas velhinhas do soalheiro e andarem de boca em boca.
Já minha mãe dizia,
" ó mar alto, ó mar alto, ó mar alto sem ter fundo, mais vale andar no mar alto, do que nas bocas do mundo".
Com a lâmina das facas na pedra de esmeril, ouviam-se gemidos cortantes que chispavam línguas de fogo e anunciavam a lenda que gira, gira, gira, à volta dos amoladores.
Diz a lenda, que sempre que o amolador fizesse rodar a sua roda, estava a chamar a chuva.
- Vem lá o amolador, vem lá o amolador! Vamos ter chuva, vamos ter chuva!
- diziam os idosos na minha aldeia.
O tempo passou.
A minha infância guardei-a, de novo, no tear que tece as minhas horas, os meus sóis e as minhas luas. Embrulho-me no véu da noite e pergunto:
- Onde estão os amoladores?
Que foi feito destes trabalhadores ambulantes?
Hoje, caem promessas do ar e os amoladores, não se viram chegar! Teriam voltado à sua terra de origem, Ourense perto do Rio Minho?
Talvez e lá permanecem tristes, porque já ninguém quer afiar facas nem tesouras e as crianças já não brincam com a terra molhada!
*Cascavelho: Castanha ou fruto atrofiado ou incompletamente desenvolvido
