O Tio António era um homem que se considerava feliz.

O Rio da Carvalhosa, que lavava as raízes da sua casa, não engrossava o caudal com lágrimas vertidas no seu leito.

Os espinhos da vida eram transformados em terços e sorrisos espelhados no reflexo das águas giratórias dos moinhos da Fonte Branca.

Tio António, o moleiro que durante sua vida carregou dois burrinhos e calcorreou o coração da Serra do Montemuro, num vai e vem amassado nos sacos cheios de tudo e quase nada, sofria nas dores do próximo, a escassez das mesas vazias.

Dizia ele, que se fosse rico, ninguém teria as tripas a roncar, nem os pés descalços. Mas, a penúria rasgava o horizonte das colinas, num manto tecido de carências.

Numa manhã, ainda beijada por constelações, preparou-se para subir o caminho sinuoso que o levaria até à Póvoa do Montemuro.

Com os sacos arrumados no dorso dos animais, subiria a serra para levar aos fregueses o pó alvo, sustento das famílias.

- Até logo, Cândida! Não esqueças de pôr o grão a moer, porque amanhã tenho que levar a Cetos.

Olha a cabra que está prestes a parir! Ela pode precisar de ajuda. Hoje, deixa-a na corte, não a leves para o pasto juntamente com as outras.

- Vai, com Deus Nosso Senhor, homem. Cuidado, não caias, pois ninguém te ouviria para te acudir!

- Olha, lá, António, os burros levam carga muito pesada. Tem cuidado, pois são eles que nos trazem algum dinheirito para dentro do colchão.

- Não te apoquentes mulher. Eu sei bem o que faço. Aprendi com meu pai, que Deus o tenha e olha que todos os burrinhos morreram de velhice!

Fez o Sinal da Cruz, rezou um Pai Nosso e uma Avé Maria e caminhou nas recordações e saudades de duas almas que há muito tinham partido: seu Pai e sua Mãe.

Pouco chão tinha pisado, quando encontrou um homem sentado à beira do carreiro.

Pés na terra, calças rotas seguras com fios de linho e rosto faminto, era o peso da pobreza que pintava de negro os rostos da maioria daquelas gentes.

- Bom dia, bom homem! Precisa de ajuda?

- Ó senhor António, eu ia ter consigo ao seu moinho, mas as pernas, de tão fracas que estão, deixaram-me aqui.

- Então, que me quer?

Em que o posso ajudar, tio Leonel?

- Vinha pedir-lhe que me desse uma mão cheia de farinha. Tenho seis bocas em casa que choram de fraqueza. Se, o senhor António me desse um saquinho desses, Nossa Senhora das Dores, lhe pagaria!

- Que posso eu fazer? Eu não posso dar-lhe o que não me pertence! E, por desgraça maior, não tenho grão nenhum no moinho que seja meu! Eu não posso ajudá-lo, por mal dos meus pecados! Parte-se-me o coração ter que lhe falar assim, tio Leonel, mas infelizmente, é a verdade!

Mas, bata à porta, que minha Cândida não lhe negará a última broa que tem na masseira.

O moleiro subiu nas dores e nas misérias daquele homem, como coração apertado no peito.

O dia tornou-se longo naquela mágoa.

As lágrimas, longe do Rio Carvalhosa, regavam o chão.

Era já noite quando regressou a casa.

Os burros traziam a esperança em grão dourado, nos sacos.

Com violetas nos olhos, aliviou os animais cansados. Entrou no moinho parado. Não viu farinha no chão.

Surpreendido, deitou as mãos à cabeça.

Numa pedra estava algo.

Um cartucho de papelão, com algumas palavras escritas a carvão, dizia o seguinte:

- A este moinho entrei, o fole de farinha levei, para o novo ano lho entregarei, porque a fome não tem lei.

Tio António percebeu, finalmente, o que tinha acontecido.

O tio Leonel, desesperado, com filhinhos em casa a morrerem de fome, escreveu a ouro as letras, amparo de uma mesa carcomida pela avidez seca no céu de tantas bocas.

- Hoje, mulher, nas nossas preces, vamos pedir a Deus Nosso Pai do Céu, que abençoe o lar do tio Leonel, pois, parece que por lá, Jesus ainda não passou.

Nessa noite, o sono vagueava pelo horizonte crioulo.

A dor sentida deixou-o acordado nos lamentos das orações choradas, que seguraram algumas lágrimas vertidas no Rio da Carvalhosa.

Tio António e Tia Cândida subiram em Graça, para o Reino Eterno, há mais de duas décadas, mas sua bondade é cântico celestial, nas pedras dos moinhos da Fonte Branca, que embalam na mó, os cardos de uma vida sofrida.

Memórias da filha Lúzia guardadas numa arca, que abriu para mim, ao som do murmulhar das cascatas do Rio Carvalhosa!

A autora - fotos do arquivo pessoal

 

 

Publicado em
1/5/2022
na categoria
Caminhos na História
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Celeste Almeida

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