Na aldeia de Mouramorta, ouviam-se as dores de Maria prestes a dar à luz.

Fotos do arquivo pessoal

O cheiro, a canela pairava no ar, antecedendo o espírito natalício.

Na Igreja, as palhinhas do presépio enalteciam a natalidade orquestrando cânticos angelicais.

No horizonte, as nuvens escondiam-se atrás das montanhas. O sol caminhava lentamente, atrasando o manto negro que iria cobrir todo o universo.

As lavadeiras curvavam os corpos no lavadouro do tanque, a dois passos da escola. Batiam a roupa ensaboada na pedra, ritmada pelas conversas do alheio. As águas agitavam-se com o peso do surro das roupas corroídas pelo uso.

Na leira, mesmo ao lado do fontanário, brincava feliz o pequeno Márcio. Criança, de quatro anos, carregava nos pés o sofrimento da operação feita, ainda bebé, para lhe proporcionar caminhar atrás dos seus sonhos.

Sua mãe, atenta às traquinices do menino, alertava-o para os perigos.

- Tem cuidado, Marcinho, não caias! Olha aí esses penedos. Não tropeces, lembra-te que teus pesinhos são muito delicados.

- Não se preocupe, mãezinha. Eu ando a caçar coelhos com esta vara. Tenho que apanhar três. Um para mim, outro para a avó e outro ainda para a Tia Otília. Vou caçá-los com esta vara, vê mãe?

A mãe sorria com um olhar místico no eco das palavras ouvidas e repetidas daquele povo.

- Eu bem te digo, Adília, eu bem te digo, que este menino não veio ao mundo para ficar. Lembra-te, que ele não é teu, por isso vai-te preparando para o veres partir.

- falou-lhe na alma, a Tia Maria, enquanto estendia as toalhas de linho no coradouro.

- Não me diga isso, Tia Maria que se me rasga o coração.

Anda cá, meu filho, vem comer esta maçã. Depois, voltas para a caça.

O Marcinho pousou a vara em cima de uma pedra e no seu vagar apressado apanhou a maçã, voltando para a sua luta.

Os coelhos não saiam das tocas e estava difícil pôr a ceia em três mesas.

As ramadas dos pinheiros estendiam os lençóis no recreio da escola.

A água do tanque pintou-se da cor do sabão azul.

Nas bacias amontoava-se o aconchego dos corpos. O lavadouro deixou de sentir as carícias das mãos calejadas.

No murmulhar da fonte, calou-se o universo inteiro.

A luz da vida da Tia Adília cegou nos seus olhos.

O Marcinho já não estava na leira.

Com a bacia da roupa, caminhou apressada no eco das palavras que tantas vezes ouviu.

"Vai-te preparando Adília, o teu filho não veio ao mundo para ficar. Ele não é teu."

Com a esperança metida num bolso, foi a casa da irmã Otília.

- Ó Tila, o meu filho está contigo?

- Não, hoje ainda não lhe pus os olhos em cima.

- respondeu ela, com a aflição tecida no peito.

A toda a pressa, voltaram ao fontanário.

O chapéu de palha da criança chorava em cima da pedra fria do bebedouro das vacas.

No fundo jazia o menino. Os braços afogados na água, retiraram a criança morta.

Ninguém ouviu as lágrimas que caíram da bica.

Ninguém viu os Anjos que vieram buscar aquela criança, nas penas molhadas.

A aldeia chorou.

A fonte não secou.

A saudade ficou a correr para sempre na nascente, que brota no coração da mãe, que continua a ouvir o eco das palavras daquela boa gente.

Eu, jamais, voltei a abrir a porta da escola, por onde entrava o sorriso de uma criança, de quatro anos, todas as manhãs e me pedia:

- Senhora professora, posso ficar aqui contigo?

- Podes, meu amor, tu ficarás para sempre no meu coração. Fazes parte da minha história. Uma história triste, a ensombrar tantas outras alegres, que vivi na "minha" aldeia, onde alguns anos lecionei.

Celeste Almeida. Autora do texto

Publicado em
4/8/2022
na categoria
Caminhos na História
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