De olhar afundado na ribeira da Carvalhosa, sob o céu azul e frio, resiste a "Villa" de Bugalhão, nas sombras da noite e nos fantasmas do tempo.

Nos primórdios da nacionalidade, o sol escondia-se por detrás das marmitas de xisto.

A dureza da vida espalhava miséria nas lágrimas do tempo reprimido.

Um pastor, de olhar iluminado pelo silêncio, pisava o ar agreste da encosta, batida pela rotina do gado.

De punho estendido para o chão, afogava os gemidos, na nascente do Penedo da Fonte Fria.

Com a cara rude, como a casca dos castanheiros, permanecia de rosto carregado, vigiando as cabras que afiavam os dentes na vegetação.

Encostado a um muro lamacento, olhos perdidos no horizonte, sentia a melancolia da linha, que se perdia para além das Portas do Montemuro.

De súbito, aos seus ouvidos, chegou, vindo de longe, um alarido misturado com uma nuvem de sombras negras.

A "vila" mergulhou num negrume, em pleno dia.

Uma tempestade de formigas brancas, invadiu o lugar.

O pastor empalideceu, nas trevas, como um grito surdo.

O povo correu para a rua, chorando.

De joelhos, vergados pelo pavor, suplicavam:

- Piedade, Virgem Santíssima, tende piedade de nós!

A força das lágrimas e das preces, parecia não chegar ao Céu.

As formigas pisaram a terra e comeram todos os segredos dos campos e das arcas. Semearam a morte, o luto e a desilusão.

Ouviam-se choros e ranger de dentes.

O caudal do rio da Carvalhosa era um manto de sangue.

A "vila" transformou-se num cemitério de jazigos sem corpos. Tudo estava a ser devorado pela praga gigante.

O pastor mordeu os lábios, para evitar a fraqueza de chorar.

Com voz firme, disse:

Salve-se, quem ainda tiver tempo!

Seremos todos reduzidos a nada, se permanecermos aqui!

Quem tiver pernas, venha comigo!

Foram poucos, aqueles que o acompanharam.

Subiram a encosta por um atalho cheio de pedras, e encontraram um pequeno povoado, no cimo da colina.

Lá, vivia um casal de irmãos: a senhora Angelina de Sousa e o senhor Aleixo de Sousa, numa pequena casa feita de pedra.

Aos serões, para matarem a solidão, trabalhavam para que a família crescesse:

A senhora Angelina esculpiu na rocha uma irmã gémea,batizada de Picoa, enquanto o irmão esculpiu, o seu Picão.

Para não serem perdidos de vista, aprisionaram-nos nos muros da casa.

Os recém chegados, num misto de assombro e medo, resolveram ficar ali.

Sem casas, sem terras, sem nada, permaneceram algum tempo, naquele céu aberto, banhado pelo halo das maias.

O povo cresceu, com o nome de Picão.

Era precisa mais água, e da rocha dura, começou a correr água boa, cristalina, fresca e pura, como só a água da Serra do Montemuro, o sabe ser.

Aquele sítio foi um presente do Céu, recebido no colo das mãos postas em oração, pelo povo fugidio da "vila" adormecida na coroa do Rei D. Dinis.

Por vezes, as almas de quantos foram triturados e engolidos pelas formigas brancas, vêm secar as lágrimas do Picão e da Picoa separados pelas mãos dos homens!

Há muito, no tempo sem idade, olham-se enamorados, tal Pedro e Inês, naquelas duas casas no centro de Picão.

Celeste Almeida-Autora do Texto

Publicado em
4/8/2022
na categoria
Caminhos na História
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