Estávamos no mês de Maio. Precisamente no dia de Santa Cruz; dia três!

Já lá vão mais de setenta anos!

O dia tinha amanhecido na poeira das folhas levadas pelo vento.

Na Quinta da Seiceira, bem perto da Ermida, repousava a vida árida nas feridas das mãos, do tio António e da tia Conceição. Carregados nas horas, pisavam a terra rasgada pela charrua, que ocultava suaves mistérios e prenúncios.

Os animais deveriam descansar no odor poluto do curral, pois segundo a tradição, no dia de Santa Cruz, os trabalhos pesados eram actos profanos. A família era numerosa e o sustento tinha que ser posto na mesa todos os dias! Havia que "semear" as batatas e aproveitar a junta de vacas que um familiar lhe emprestara.

Enquanto os animais abriam o ventre do solo, que mais tarde pariria o tesouro das bocas famintas, a tia Conceição sentada no pó da terra, partia as batatas, para sepultar nas rugas do terreno fértil.

"Com um olho no burro e o outro no cigano" vigiava as crianças que corriam atrás das borboletas e dos raios de sol, filtrados nos ramos das oliveiras.

Seu marido tinha-lhe dito que ficasse em casa para fazer aquele trabalho, pois sempre estaria mais confortável, sentada no mocho de pinho, que tantas vezes, ouviu suas mágoas e lamentos.

Coração de Mãe, é uma fonte de cadinhos, e sussurrando ouviu-se-lhe:
-"Vou para lá para guardar os pequenos.
Uma Mãe tem olhos por trás e pela frente"!

As risadas da canalha ecoavam no ermo do monte e assustavam os pássaros que vinham beber a água ao rio e bicar as sementes perdidas no chão. O campo florido e remexido era um convite à vida. Sentia-se o perfume das maias floridas, a aragem fresca que as embalava para lá e para cá, compassadas com a melodia das águas que corriam tempestuosas e galgavam as margens, fazendo estremecer as pedras nos grilhões que as aprisionavam.

Maria Joaquina, com cinco anos de idade, lindo botão em flor, que lentamente desabrochava com o remoinho das emoções e numa perfeita simbiose de felicidade e traquinice, debruça-se num bardo para ouvir a enxurrada que parecia cantar-lhe ao ouvido e chamá-la para o seu leito!...

Num repente, o dia fez-se triste e opaco!

Tudo parou!

A natureza ficou pálida, as folhas verdes das árvores caíram e cobriram com um manto negro o buraco aberto no coração daquela família.

O dia fez-se noite permanente.

As águas do Rio Paiva, aumentaram o seu caudal, com as lágrimas choradas de dor e de lamentos. A tragédia tinha acontecido e nem "os olhos que uma Mãe tem por trás e pela frente" a puderam evitar.

Maria Joaquina...que tinha apenas começado a viver...foi abraçada pela fúria do rio e viajou num barco feito de espuma...e nunca mais se viu!

Tio António, que dava sua vida pela da filha tão amada, lança-se no frio das águas, coberto de pó e suor, nadando até o cansaço e o resfriado o paralisar. Com o coração a sangrar, trilha o caminho da morte e depois de tanto clamar pela filha, ele e família são arrastados pelos vizinhos para o lar, que nunca mais seria o mesmo.

Devolve minha filha, ó rio!

Águas que levaram minha Joaquina, tragam-ma de volta!

Pedras soltem o meu amor!

Dia após dia, murmuravam no eco do pó da terra...o inconformismo, que a todos matava lentamente!..

Os dias negros adormecidos no luto, caminhavam na alma eremita do sofrimento.

Oito dias se tinham passado nos ponteiros parados do relógio.

Olhavam o vazio da bravura daquele sítio...e ali, no Poço dos Frades...repararam num vulto jazido nas pedras.

Era a Maria Joaquina !

Era a filha tão desejada...mas que se partia e desfazia ao mais pequeno toque!! ...Era um botão de rosa, que ao ser tocado ia deixando cair as suas pétalas, numa agonia nunca antes sentida!

Tio António...o pai que nunca mais se recompôs...passadas poucas luas....foi ao seu encontro no além, mas, sem antes ter deixado uma outra Maria Joaquina, no seu lugar, em sua homenagem!!

Esta ...ainda vive, na localidade de Mosteirô.  Pai e filha de novo se puderam abraçar...e quem sabe, de novo puderam sorrir!

( Facto verídico)
Celeste Almeida-Autora do texto

Publicado em
5/12/2022
na categoria
Caminhos na História
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