Todo e qualquer povo é escravo da sua palavra ancestral, quando a diz com o coração.

Os místicos acontecimentos ficarão para sempre escritos nas raízes do chão montemurano, com as penas do próprio sangue.

Era dia de Festa na aldeia.

O sol estava escaldante e abrasador.

O pó acumulava-se nos lábios dos peregrinos.

O suor e o cansaço mergulhavam na água santa da fonte da Igreja.

A fé crescia numa renovação de vida e cor.

No eremítico dos mais idosos, mantém-se vivo o drama que vestiu de negro os sinos da torre.

O Senhor Padre erguia aos céus, o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os fieis, prostrados de joelhos, rezavam fervorosamente em silêncio.

O ar era purificado pelos sussurros das orações suplicantes.

Certo dia, evaporado na correnteza do Paiva, um caso imprevisto alterou aquele tão doce momento.

Maria Luísa, sentada no escadório do adro da Igreja, levantou o olhar e poisou-o na hóstia consagrada. Sentiu-se cercada de forças muito superiores às suas.

Forças estranhas que desafiavam o Bom Deus à luz do dia.

A pedra desapareceu debaixo dos pés.

Um ronco aflitivo rasgou-lhe a garganta.

Os olhos reviraram-se da cor do poente.

Uma crispação profana mudou suas feições.

A boca espumava.

Todo o corpo se movimentava de forma alarmante.

O bolo da Teixeira, engolido minutos antes, espalhou-se nas vestes de quantos a rodeavam.

Aquela multidão sentiu um arrepio que secou as águas do tanque do fontanário.

Nos poucos saberes, tentaram ajudar a infeliz, que estava mais para lá , do que para cá.

Quando o Senhor Padre baixou o cálice e a hóstia, Maria Luísa levantou as pálpebras e fixou-as na porta da Igreja.

A boca, antes cerrada, fazia movimentos de mastigação.

Lentamente, as cores das orquídeas cobriram seu rosto.

O perfume dos cravos que enfeitavam o altar e os andores expurgavam o cosmos, antes poluído pela força do mal.

Murmúrios não dialogados esconderam-se nos pensamentos dos crentes e na fé das almas.

- Pobre Luísa estava possessa pelo demónio!

- Verdade, o demónio revoltou-se quando foi confrontado pelo poder da hóstia!

- Mas já se libertou, a pobrezinha!

Já lhe abandonou o corpo e a alma!

Tudo passou.

Tudo se foi.

Apenas as memórias jazem na noite do fontanário.

Hoje, em dias de festa na aldeia, a primeira pessoa a beber água da fonte, vê o reflexo do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

São muitos os que vão de véspera e pernoitam no escadório, a fim de serem bafejados pela visão sagrada guardada no tempo sem tempo.

 

 

 

 

 

 

Publicado em
1/5/2022
na categoria
Caminhos na História
Clique para ver mais do autor(a)
Celeste Almeida

Mais do autor(a)

Celeste Almeida

Ver tudo