Mais um ano se passou.

Com nostalgia, viajo a outras eras e outro lugar:

a aldeia do Canedo do Chão, Mangualde, minha terra mãe.

Longe vai o tempo, em que na minha aldeia na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, os rapazes diziam adeus ao ano velho, com rituais que hoje ultrapassam o imaginário dos nossos dias.

Estes rituais nem sempre eram feitos da mesma maneira.

Recordo, dos meus tempos de criança, os rapazes correrem as ruas da aldeia, com um grande boneco feito de palha vestido com roupas rotas e calçado com umas botas muito velhas.

O boneco era pendurado num pau e hasteado no ar para ser bem visto por todas as pessoas.

Com grande alarido, os rapazes começavam no lugar do Passo e rua abaixo, não esquecendo os becos, iam até ao fundo do povo. Era uma algazarra , uma animação e não havia casa que não abrisse as portas para aplaudirem tamanha folia.

" Morra o ano velho e tudo que de ruim nos trouxe"

gritavam eles a rasgar o silêncio da noite.

A " procissão " era interrompida, quando no lusco - fusco se ouvia,

" venham beber um copito".

Os rapazes com a garganta a picar de tanto frio, encostavam o " Ano Velho" ao muro, entravam nas cozinhas, aproximavam-se da lareira, comiam uma rabanada ou uma frita de abóbora porqueira e bebiam um copo de vinho ou uns golitos de aguardente.

Uns minutos de conversa e lá seguiam viagem, sempre com muita animação.

Este costume terminava com o boneco de palha a ser queimado na fogueira que tinham deixado acesa no adro da capela.

Esse momento era o despejar das mágoas, das tristezas, das coisas ruins que tinham acontecido durante o ano.

" Arde aí Ano Velho e leva contigo, tudo que de ruim nos trouxeste".

Com uma mistura de profano e de fé , os rapazes queimavam o Ano Velho, pedindo ao Ano Novo que lhes trouxesse melhor sorte.

Chegada a meia noite, davam vivas ao novo ano com bombas e alguns foguetes. Foguetes que apenas estoiravam no ar, pois outros, destes que nos deslumbram a todos, não eram para bolsos com meia dúzia de tostões!

Assim era uma das tradições da " Queima do Ano Velho "

No entanto, tal como afirmei, o adeus ao Ano Velho, poderia ser feito com outro ritual similar. Tudo dependia do que os rapazes combinassem.

Se não tinham o boneco feito, muniam-se de testos, panelas de alumínio, chocalhos, latas e calcorreavam toda a aldeia fazendo uma enorme barulheira, censurando e protestando o que de desagradável tinha acontecido ao longo do ano.

Interessante, era o hábito, ou até mesmo a superstição que as mulheres tinham de guardar durante todo o ano, a loiça de barro partida,  como por exemplo, os cântaros, os tachos, as panelas, os púcaros para serem escaqueiradas, quando os rapazes passassem com o Ano Velho às suas portas.

Assim, se juntavam ao ritual e enxotavam o ano velho das suas casas para entrar a felicidade.

Estes costumes, enraizados em alguma sátira popular, tinham como objectivo protestar de forma jocosa contra o ano que estava a terminar e, ao mesmo tempo, abrir as portas ao ano que estava a chegar.

Hoje, estas e outras tradições caíram em desuso, mas ainda perduram na memória daqueles e daquelas que as viveram e relembram com saudade.

É verdade, que não se vive do passado, mas sim do presente e do futuro. No entanto, para compreendermos as transformações pelas quais a cultura popular tem passado ao longo dos tempos, é necessário conhecermos a história da própria cultura e tudo fazermos para a manter viva na memória.

Só assim, preservamos, valorizamos e protegemos a nossa identidade.

Tal como diz Marcus Garvey,

...um povo sem o conhecimento de sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes.

 

Celeste Almeida - ontem

Celeste Almeida - hoje
Publicado em
14/1/2023
na categoria
Caminhos na História
Clique para ver mais do autor(a)
Celeste Almeida

Mais do autor(a)

Celeste Almeida

Ver tudo