Naquele ano longínquo, o inverno chegou com o seu cortejo de desgraças.
A noite desceu nas colinas e matou o dia.
Macário, almocreve*** de profissão, fez as orações da noite com sua mulher, pegou nos sacos cheios de encomendas e partiu. Nas raízes do chão ouvia o triste agoiro, que um dia o fez deixar o berço de origem.
Maldita aquela manhã em que entrou na gruta do bruxo à busca do seu destino. Como pôde aquele feiticeiro dizer-lhe que iria matar os autores dos seus dias?
Aquela frase era ferro em brasa no seu peito.
Sussurrava-lhe nos ouvidos como uma sentença infernal.
Nem o conforto que sua mulher lhe dava, o acalentava.
Seu rosto vivia escondido nas sombras misteriosas do passado.
Seu corpo carregava sacos cheios de tristeza e saudades que cresceram durante três verões e três invernos.
O dia amanheceu coberto de neve. As ramadas das matas sufocavam a profecia amaldiçoada.

Ana olhava o lume, parada no desalento. Nas pedras do chão a amargura apertava as lágrimas caídas na profundeza do amor que tinha ao seu marido. Batidas na porta desviaram-na de uma expressão de horrível sofrimento. Sozinha, naquela imensidão de monte, teve medo.
Quem seria?
Seu marido não era, pois sabia o esconderijo da chave! Limpou o rosto com as mãos e com as pernas a tremer espreitou no postigo. Um homem e uma mulher estavam ali, à sua porta, encharcados e a tiritar de frio. Não hesitou. A força da compaixão falou mais alto do que o próprio medo.
- Meu Deus, entrem, entrem! Venham aquecer-se ao lume. Mas, dizei-me, quem procurais por este ermo?
- Procuramos nosso filho Macário. Alguém nos disse que ele vive por aqui, na serra!
- respondeu o pobre homem na sua voz trémula.
- Então, os senhores são os pais de Macário? Deus seja louvado! O meu Macário vai ficar tão feliz, quando vos vir!
Ana, calou-se por instantes. Depois, abraçaram-se e choraram numa mistura de sentimentos. Apressou-se a trocar-lhes a roupa molhada. Deu-lhes o melhor que tinha guardado na arca. Confortou-lhes o estômago com um caldinho bem quente. Refeitos do frio, da fome e do cansaço, os pobres velhos acabaram por adormecer, enternecidos pela bondade da mulher do seu filho.
Aninhas precisava de arranjar alimento para os dias seguintes. Amassou o pão e subiu o monte. Com cepas de urgueira fez um molho. Amarrou-o com uma giesta de felicidade e acelerou os tamancos no uivo do vento.
Macário chegava.
Empurrou a porta, entrou e viu dois vultos na sua cama. Na sua própria cama. Um clarão de fogo rasgou-lhe a alma. De cabeça perdida, pegou no machado que tinha pendurado na parede que parecia gritar-lhe vingança. Com fúria enraivecida, correu para o leito e desfechou vários golpes nos vultos adormecidos na paz do Senhor.
Nesses instantes sangrentos, Ana, sua mulher entrou em casa com o molho da lenha. Caiu a seus pés desmaiada.
Macário ficou paralisado.
Não conseguia entender o que estava a acontecer.
As palavras do bruxo ecoavam, agora no horizonte.
O fado tinha sido cumprido.
Levantou os lençóis que cobriam os corpos e vê seu pai e sua mãe barbaramente assassinados pelas suas próprias mãos.
Louco, vagueou pela montanha.
Gritou aos penedos até ficar mudo.
O remorso não o deixava viver.
Enterrou-se até à cintura num lugar deserto.
Deixou de comer e de dormir.
Caminhou em cima das brasas.
A penitência era o seu alimento.
Transformado num bloco de pedra e poeira, as palavras saiam da sua boca como gemidos de alma.
Pregava o Bem e condenava o Mal.
Um dia, morreu. Sem um ai, sem um suspiro, sem um queixume.

Os fiéis, vindos de todo o país, jamais o abandonaram. Continuam a ir até à Serra do São Macário pedir proteção ao Santo que nas suas orações continua vivo, tal como vivo está, na fé do povo peregrino do Montemuro.

Nota do Editor:
*** Almocreve = Pessoa que conduz animais de carga em viagens periódicas ou não.

