ERA MINHA TIA, Glória era o seu nome.

Nascida na aldeia do Canedo do Chão, no seio de uma família numerosa, em muitas madrugadas, despertou o sono caminhando para seu abrigo secreto e misterioso.

A Igreja Matriz de Mangualde ficava a alguns quilómetros, mas Glória ainda botão em flor, fugia de casa de seus pais para ir visitar o Jesus com quem falava em silêncio todos os dias.

Seus pés frágeis não podiam com os tamancos. Levava-os nas mãos para melhor correr, ferindo a pele que muitas vezes sangrava. Pendurava no pescoço o terço que tirava da mesinha de cabeceira de sua Mãe e acariciando as contas, pedia ao vento que a empurrasse e a levasse depressa para junto do seu maior Amigo.

As primeiras palavras que aprendeu a dizer na boca semicerrada, foram as orações que à noite lhe baloiçavam o berço.

Aos quatro anos Glória sabia o Pai Nosso, a Avé Maria, o Anjo da Guarda e o Creio em Deus Pai.

Ao chegar ao lugar Santo, os dedos não conseguiam segurar os soluços. Seu tenro corpo gemia contorcido na pia da Água Benta, com que saciava a sede daquele Amor Bendito.

Ajoelhada no Altar Mor levantava as mãos trémulas, tentando tocar as imagens sagradas que para ela sorriam.

Naqueles momentos jurava ao Sagrado Coração de Jesus, que sua alma iria ser alimentada pela Palavra Viva descida do Céu.

Seu desejo era ser uma Esposa do Senhor e com a oração fazer parar o sangue que corria do Seu coração.

Acendia na esperança e na fé, os cílios diluídos na emoção. Escondia nos poros aquele segredo ouvido apenas pelos sinos da torre da Igreja.

De corpo curvado em cima do chão, as palavras cresciam-lhe na boca. Sobre as pernas dobradas nascia dia após dia a coragem presa no incenso, havia já tanto tempo.

Tinha que decidir, tinha que agir.

Com doze anos foi ao encontro do seu sonho.

Sem medo, foi peregrina em trilhos desconhecidos. Caminhou dias e noites. Bateu à porta de estranhos, mendigando um pouco de pão, uma malga de caldo ou simplesmente um copo de água. Exausta dormiu ao relento, aquecida pela terra.

Deitou-se em enxergas de fenos e cobriu-se com os aromas silvestres. Sentiu muita vez a dor da fome e das feridas rasgadas no ventre atado com as preces. Depois de longos dias e longas noites, os pássaros cantaram.

O céu rasgou-se.

As portas abriram-se de par em par.

Glória virou as costas ao mundo que se fechou nas paredes daquele convento. Abraçou desnudada a solidão .

Descalçou-se de prazeres e afetos familiares.

Vestiu-se com o hábito que para sempre lhe cobriu o corpo, o hábito das Carmelitas Descalças.

O hábito que a fez freira, a sua vocação eremita até à morte.

Glória era seu nome.

Era irmã da minha saudosa Mãe. Eu era sua sobrinha. Vi-a, apenas uma vez. Teria uns cinco anos de idade, mas recordo suas palavras como se fosse hoje.

" Queres vir para freira, Letinha, queres?"

O Convento foi o Carmelo da Imaculada Conceição em Braga. Lá viveu em clausura, lá morreu e lá ficou para sempre.

Arquivo pessoal

 

Publicado em
1/5/2022
na categoria
Caminhos na História
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Celeste Almeida

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