Eram tempos em que as pessoas bebiam a água do mar que lhe corria nos rostos.

Tempos, em que se partilhavam os braços nas sementeiras e as bocas nas colheitas.

Tempos, em que o silêncio dos montes e os penhascos assombrados amedrontavam as almas humanas, que dormiam naquele mito nupcial, entre o céu e a terra.

Assim era a vida, naquele Portugal profundo, onde o isolamento das pessoas fazia delas, peregrinos do seu próprio tormento.

O senhor José Maria de Almeida nasceu na era, em que pouco se esperava da vida, porque naquele fim do mundo, se algo abundava, era o ar com o cheiro do fumo que pintava de negro as paredes das casas cobertas com colmo; eram os caminhos estreitos, entapetados com caganitas e bosta das vacas; era o orvalho que despertava nas madrugadas, condenadas à pobreza, à privação e à miséria; era o vazio dos sonhos daquelas gentes que só um mundo conheciam:

O Mundo da Fome.

Desde criança, muito antes do toque das Avé-Marias se ouvir, já a mãe gritava da cozinha:

- Zé Maria, quem não trabalha não come. Toca a levantar. Olha o gado que não se cala na corte. Anda, sai da cama!..
- Já vou, senhora mãe, já vou.

Saltava da enxerga de palha, vestia rapidamente as calças mais rotas que remendadas, metia os pés nos socos e já na cozinha pedia a bênção à senhora mãe que por ela era abençoado.

Depois, migava um pedaço de broa numa malga, ao mesmo tempo que a progenitora lhe deitava o leite acabado de ferver.

Em poucos minutos, as ruas estreitas eram inundadas por um rio de animais que, apressados, caminhavam para os pastos da serra.

Assim, acordava a aldeia todos os dias.

Zé Maria foi crescendo. Aprendeu a lavrar a terra, a deitar a água ao lameiro durante a noite, a ir ao moinho... no fundo, aprendeu a sobreviver como todos os habitantes da aldeia.

Longe de tudo, longe de todos, viu muitas vezes, as pessoas que adoeciam serem transportadas numa padiola por caminhos íngremes até à localidade de Vila Boa ou Ferreiros.

Lá, se houvesse uma alma caridosa que tivesse um meio de transporte, o que raramente aconteceu, suplicavam que levasse o doente até à vila de Cinfães.

No entanto, foram mais as vezes, em que quatro homens caminharam o mais depressa que podiam, durante quatro horas até à vila, carregando o doente na padiola.

Tantas vidas se salvaram com a solidariedade, o sacrifício e o amor que havia entre todos! Tantas vidas, mas não todas, infelizmente.

Cansado de ver as gentes da sua aldeia a viverem com o coração nas mãos, decidiu seguir o exemplo de outros amigos da sua geração e embarcou para o Brasil.

Encheu-se de coragem, de bravura, de espírito de luta e despediu-se de tudo que amava.

Levava na bagagem duas ou três mudas de roupa e a ambição de poder ajudar o modo de vida do seu povo.

Tinha que arranjar dinheiro para abrir uma estrada que ligasse a sua aldeia de Pimeirô à freguesia de Ferreiros.

Os anos passaram.

O senhor José no Brasil tornou-se um homem de sucesso, dono de uma agência de viagens. Empregou alguns filhos da terra e da região, porque o amor pela sua aldeia de Pimeirô crescia juntamente com a saudade.

No Brasil, juntamente com o senhor João Ribeiro, senhor Manuel Pereira, senhor Manuel Joaquim, todos filhos da terra, arranjaram uma boa quantia em dinheiro.

Regressou, então às origens para mandar abrir a estrada que tanto ambicionava, mas, ao chegar, a dita estrada já existia.

Pimeirô tinha finalmente uma ligação a outras localidades, que a unia e separava de tudo e de nada.

- E agora? Que destino dou ao dinheiro?

Não posso voltar ao Brasil, onde a família e os negócios me esperam com o dinheiro no bolso! - pensou ele.

Naquela aldeia que continuava a guardar segredos e mistérios, lembrou-se de mandar construir uma capela, à beira da estrada, no baldio chamado Lameira dos Gados.

Construída a capelinha, deslocou-se a Lamego com o intuito de ter permissão do senhor Bispo, para mudar todas as imagens dos Santos existentes na capela da aldeia, local de culto cuja origem se perde no tempo.

Para tristeza do senhor José Maria, mas para alívio dos habitantes da aldeia, o senhor Bispo não autorizou tal ato.

Os dois Santos Padroeiros da terra e todos os outros que simbolizam a aliança entre o Povo e o Céu, mantêm-se nos altares do templo antanho, espelhando a devoção das gentes de Pimeirô.

A capela, que nunca foi capela, construída com donativos vindos do Brasil, vive, fustigada pelo vento do Montemuro, esperando que a "Associação Melhoramentos e Cultura de Pimeirô"  a transforme em algo que afague aquele povo humilde, meigo, frágil, mas resiliente como os penedos que brotam da serra, parecendo cogumelos.

Celeste Almeida - autora do Texto

 

 

Publicado em
30/9/2022
na categoria
Caminhos na História
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